quarta-feira, 6 de abril de 2011

No trilho de Pokhara



Hora de rumar a Pokhara. Excitados com a ideia. Trata-se de uma das capitais mundiais do treking e o preço da viagem parece-nos decente. Não pagaremos muito mais do dobro do que os locais. Bom, talvez apenas o triplo.

Subitamente, ficámos sós no mini-bus. O trio que nos atendeu na caótica central de camionagem desapareceu. Para desconfiar? Sem razão. O motorista volta pouco depois. Arrancámos. Tudo só para nós. Estranhamente, não há mais qualquer passageiro.

A realidade não tardou a mudar. Ainda nem tínhamos saído da central de camionagem. De “à patrão” a sardinha enlatada foi um instante. Ao motorista juntam-se dois sócios, toda a viagem em pé na porta, com a cabeça de fora, a angariar passageiros. A buzina não se cala. Pela primeira vez, estrangeiros viagem connosco. Um casal. Não passou de um olá.


Abandonar a confusão de Katmandu é penoso. Um caos sem igual. Ansiávamos pelas paisagens de montanha. Dispensávamos era tantas curvas, em ritmo Formula 1, o motivo pelo qual os sacos plásticos para o vómito desapareceram a um ritmo louco. Felizmente, não lhes demos uso.

Hima Bertha senta-se a meu lado. Chama o irmão. Coloca-se junto do Vasco. Ela 18, ele 15. Ambos excelentes conversadores, apesar de limitações no seu inglês. Prometia…

A verdade é que deram cor única à nossa viagem. Em três horas fizeram-nos amar ainda mais este país. Abriram-nos a sua alma. Quiseram saber da nossa. Agora, entendemos melhor o que é o mundo rural do Nepal.
Orgulhosos, mostram-nos fotos da família. Não precisam dizer que são pobres. Jurávamos que a mãe de 55 anos era a avó, com uns 85. “Está muito doente”, lamenta Hima, que na foto ladeia a progenitora, juntamente com o irmão.

Ela estuda para ser professora de inglês. Mostra-me o livro que servirá de guia ao seu desígnio. Ele sonha com cinema e televisão. Não podia ter melhor interlocutor. Ela mostra umas sapatilhas verdes, acabadas de comprar. Do mais básico que há, mas o suficiente para provocar um especial brilho nos olhos. Ele confessa o sonho de ter uma bicicleta. Mas com dúvidas que o consiga nos próximos anos. “A família em outras prioridades”, diz, resignado.




A paragem de almoço serviu para lhes oferecermos duas mantas, a estrear. Um pequeno gesto simbólico pelo prazer que a sua companhia nos deu. Pouco depois, em novos zigue-zagues entre montanhas, ela vira e revira a carteira. Encontra duas canetas. Testa-as. Escrevem. Oferece uma a cada um de nós. A melhor prenda que nos poderiam ter dado neste país.

Desolados, separámo-nos. Nós ainda íamos ter mais quatro horas de viagem (as seis “previstas” passaram a um total de oito).
“Vocês vão chegar a Pokhara antes de nós”, surpreende-nos ele. Depois de atravessar a ponte de cordas, estilo Indiana Jones, os jovens irmãos tinham ainda “quatro a cinco horas” montanha acima até chegarem a casa. Sabe-se lá por que caminhos. Parte deles noite cerrada. Aos nossos olhos, sobram motivos para o fazer, mas não se queixam.

Damos os nossos endereços de email. Respondem com a sua morada. Podem estar certos que vamos escrever.

É com um sorriso agridoce que nos despedimos. Interminável. A trocar acenos e olhares até a distancia ser definitiva.

As curvas trazem-nos novos cenários. Adultos tomam banho à face da estrada. Sentados. A água da bomba pública trata de levar a espuma do sabonete. Crianças brincam por todo o lado. Pobreza extrema. Nem por isso tristeza.

A viagem continua, muda o figurino da paisagem do autocarro. Agora outras jovens ficam comprimidas no cubículo da frente junto ao motorista. Éramos 16 em parcos m2 na frente da viatura. Regularmente, o motorista tinha dificuldade em meter uma mudança, tal a confusão de corpos apinhados.

Sempre que a criança queria leite, a adolescente mãe tinha dificuldade em retirar o seio. Chegava-me ainda mais contra o vidro para lhe dar maior liberdade. Uma outra jovem pousa violentamente a mala em cima do colo do Vasco. Pega numa exausta criança de uns 10 anos, que não conhece, e fá-la dormir no seu aconchego. Tal como boa parte dos passageiros, a criança viajava em pé.

Ninguém fala inglês. Vamos todos sorrindo. Ainda mais com o olhar. Tiramos fotos. Todos querem ver. Sorriem de novo. Agora a exibir belos dentes brancos. Posam naturalmente para a objectiva.

Amassados. Exaustos. Cansados. Mas estamos em casa...

A estrada começa a dar lugar aos verdes arrozais, que desmaiam até ao rio, que teima em acompanhar-nos. As águas são puras e levam-nos até às fraldas do Annapurna…

9 comentários:

  1. Não consegui deixar de sorrir com a vossa descrição da viagem!
    Tanto cansaço e esforço, mas de certeza que vai valer a pena... Sem dúvida essa é uma viagem de sonho, de reencontro com a TERRA, com a NATUREZA, com as PESSOAS, com a VIDA...
    O que posso dizer é APROVEITEM MUITO!!!

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  2. Quem vai á Índia ou Nepal procura isso mesmo que acabas de descrever:o encontro com o OUTRO, com seres incríveis como esses manos, cheios de bondade e simplicidade, que se maravilham com o mínimo e nos fazem relativizar nossas prioridades...nossas futilidades.
    São eles que nos tocam o coração e nos dão uma verdadeira lição de vida. OBRIGADA por partilharem!
    Boa continuação de viagem...com muitos mais encontros destes!

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  3. Diz Álvaro de Campos que a "melhor maneira de viajar é sentir. Sentir tudo de todas as maneiras."
    Eu "efectivamente" (e lamentavelmente) não ando pelo Nepal mas tenho "viajado" e sonhado bastante na companhia de todos os "sentidos" das vossas histórias:-)

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  4. greetings from Zhuoling LI, nice pictures~i am doing good in lisbon~portugal is a very nice country~ and i am surprised by a lot, the people, the food and the wine as well~ how i wish i could understand what u wrote~ words from a journalist~lol!~ enjoy ur stay there~~
    xoxo

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  5. Que bonita maneira de "viver em dobro" ... preenche a alma.

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  6. É mesmo isso quando digo que sou uma pessoa de pessoas e encontrar pessoas como a Hima Bertha é o que me faz continuar a viajar. Excelentes conversadores ... adoro conversar (V.estás proibido de comentar). Mas... para licões de vida não precisamos ir tão longe ... embrenhem-se pelo do país e dispam-se de preconceitos ...e se quiserem mais .. visitem um IPO, em especial a pediatria ... aí têm a maior lição de vida (descompliquem!!) continuação de boa viagem e bom trecking para estes dias ... aguardamos os relatos da volta e as fotos da montanha ...(que inveja - bivacar 2 dias pelas montanhas do Evereste ... por aqui a serra da Freita servirá ) bj e bj b.

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  7. Pois é Aida... Tens razão...
    Eu trabalho no IPO e vou agora tratar uma menina de 6 anos que acordou há 3 dias de um coma...
    Uma menina linda! :-)
    Devo dizer que as melhores lições de vida aprendi-as no IPO. Mas a Natureza reestabelece-me de energias necessárias para continuar (bem preciso nesta fase).
    Boas energias para todos

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  8. Olá Corsário!
    Eu sabia que devia ir contigo nessas férias, mas tu não permitiste... E agora estou aqui a roer-me de inveja de tudo o que tu vês, cheiras, ouves... por essas terras mágicas todas. Resta-me a esperança de um dia ver mais fotos e ouvir os relatos pessoalmente. Boa viagem de encontro ao teu intimo. Beijos. Carolina

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  9. Olá Rui
    Sabes que mais....tou sem palavras.
    Um beijinho e boa viagem.
    Célia

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